“Ninguém deve acreditar que as respostas da Inteligência Artificial vêm de Deus, têm um criador humano. É decisivo conhecê-lo”

A corrida à Inteligência Artificial (IA), que opõe Estados Unidos da América e China enquanto a Europa parece assistir à distância, marca o início de uma nova era e merece uma abordagem original de Bruno Maçães, antigo secretário de Estado para os Assuntos Europeus. O agora consultor sénior da Flint Global, em Londres, onde aconselha empresas em domínios como a geopolítica e a tecnologia, mistura os dois conceitos no seu novo livro sobre os superpoderes que querem controlar o mundo, através de sistemas de IA que, muito em breve, garante, vão ser omnipresentes nas nossas vidas. Nesta entrevista à VISÃO, cruzamos os grandes conflitos da atualidade com o futuro próximo, à luz das ideias desenvolvidas por este doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard em Construtores de Mundos – A Tecnologia e a Nova Geopolítica (Temas e Debates, 352 págs., €19,90), cujo lançamento em Portugal ocorre nesta quinta-feira, 19, na Feira do Livro de Lisboa.
À boleia dos avanços tecnológicos, para onde nos estão a levar os novos mundos da geopolítica?
Para sítios muito inesperados, muito estranhos e, potencialmente, muito perigosos. O meu livro tem um pouco do filme Matrix por trás, ao abordar a criação de mundos artificiais ou virtuais. A diferença é que é a nossa espécie, e sobretudo os grandes superpoderes, que constroem esses mundos virtuais, porque percebem, cada vez mais, que o verdadeiro poder está em construir um mundo em que os outros são obrigados a viver. O poder é ainda maior se os outros não perceberem bem que esses mundos são artificiais nem que são controlados pelos grandes superpoderes.
Os superpoderes sempre tentaram controlar o mundo, mas as inovações tecnológicas oferecem agora ferramentas mais evoluídas. Vem daí o perigo?
No livro, os conceitos de geopolítica e tecnologia são praticamente sinónimos, no sentido em que a criação de mundos virtuais, proporcionada pela tecnologia, é uma forma radical e profunda de poder geopolítico. Mesmo a tecnologia militar é um mundo virtual, de computadores, de satélites, de comunicações, de Inteligência Artificial, como temos visto quer na Ucrânia quer em Israel. Contrasto a velha geopolítica, ligada ao controlo de território físico, com uma nova geopolítica, que tem que ver com a criação de território virtual.
Quando Donald Trump fala em anexar a Gronelândia e o Canadá, está a cobiçar minerais para o fabrico de microchips, essenciais para ganhar a corrida à IA. É a nova grande arma em disputa por EUA e China?
Essa é uma explicação, sim. Outra é que Donald Trump tem uma espécie de fantasias que quase nunca leva à execução. Os últimos meses reforçam a minha tese de que é na capacidade de invenção que se vai decidir o poder mundial e não tanto na ideia já um pouco antiquada de controlo de determinadas geografias ou materiais. Nem sabemos bem quais virão a ser os materiais mais críticos, porque a inovação avança vertiginosamente. Relevante é, por exemplo, a guerra comercial e tecnológica com a China, nomeadamente o acesso da China a semicondutores americanos e o dos EUA a terras raras chinesas e ao respetivo sistema sofisticado de refinação e de produção.
Qual a importância dos chips?
No livro, comparo-os, simbolicamente, às velhas praças militares ou pontos estratégicos do velho Império português, como Malaca, Ormuz, Goa. Isto porque são uma espécie de ponto de transição, neste caso entre o mundo físico e o mundo virtual. Quem controlar os chips, controla o acesso a estes mundos virtuais. São como pequenos grãos de areia capazes de pensar à velocidade da luz, é esse o milagre dos chips modernos.
O sistema de IA generativa DeepSeek, dado a conhecer pela China no início deste ano, é um sinal da forte concorrência que os EUA vão enfrentar?
O que me impressionou no DeepSeek, antes de tudo, foi constatar que não havia ninguém na equipa de pesquisa que tivesse estudado fora da China. Significa que estas capacidades já se tornaram muito indígenas. Temos de estar preparados para que os chatbots ao estilo de assistentes de pesquisa se alastrem, talvez já este ano, a serviços financeiros, de educação, de produção de vídeo, de publicidade, mas também à indústria, ou seja, os robôs vão estar equipados com estes modelos de IA que já estamos a usar e que vão estar presentes em todo o lado. Em breve, vão começar a moldar as mentes dos nossos estudantes e das nossas crianças e até a nossa política pública, porque os ministérios vão passar a usá-los. Daí que interesse muito saber quem é que desenhou os modelos e com base em que valores.
A sociedade parece não valorizar consequências, mas por trás da IA existirá um programador e, no topo, alguém a controlar.
No outro dia, pedi ao DeepSeek para fazer um ranking de países pelo seu grau de maldade. Curiosamente, respondeu-me que o país mais malvado do mundo era a Rússia, o que pode ser um pouco surpreendente, mas na verdade não é, porque o DeepSeek está a usar dados da internet, cuja informação é maioritariamente proveniente do Ocidente. Mas seria muito fácil aos criadores manipular os dados, ou seja, ninguém deve acreditar que as respostas vêm de Deus, seria de uma ingenuidade extraordinária. São respostas que vêm de um criador humano, com as suas inclinações, as suas preferências, os seus valores. Mas vão ter uma capacidade de moldar as nossas mentes infinitamente superior à das redes sociais. Por isso, é uma questão decisiva para a Europa e para todos nós conhecer quem desenha os modelos, com base em que prioridades e com que fins, para não vivermos numa espécie de Matrix construída pela China ou pelos EUA.
A regulação poderá ser um meio para mitigar esses efeitos perversos, mas será possível a Europa proteger-se, completamente, dos potenciais riscos de sistemas produzidos na China ou nos EUA?
Esse foi o erro terrível cometido há 25 anos, quando a Europa entendeu que as grandes empresas da internet poderiam ser norte-americanas. O que se verificou rapidamente é que não é possível regular as empresas norte-americanas. Pelo contrário, elas têm grande influência sobre os reguladores europeus. Seria possível regular as empresas europeias e espero que a lição tenha sido aprendida. Há sinais nesse sentido, mas ainda insuficientes. Infelizmente, vejo dois tipos de hesitação. Por um lado, a Europa continua a achar que empresas norte-americanas ou europeias são mais ou menos o mesmo, o que considero um erro terrível. Por outro, a Europa continua muito focada no consumidor e sem apreciar empresas grandes, que têm um certo poder monopolista. É preciso fazer escolhas e já vamos tarde. Tem sido bastante chocante ver que a China e os EUA estão a combater nos modelos de IA e que os europeus se estão a atrasar mais uma vez. A parada é agora muito mais alta do que com a internet. Isto é uma internet com esteroides, com capacidades multiplicadas por dez ou cem.
Pode tornar-se ameaça maior do que o nuclear, no sentido de um Estado usá-la contra outro?
Sem dúvida que o impacto militar da IA também vai ser devastador. As guerras do futuro serão provavelmente decididas numa questão de horas, para não dizer minutos, perante a velocidade das máquinas de deteção e de destruição dos alvos, absolutamente divina e esmagadora. Temos visto um pouco disso em Gaza e na Ucrânia. A IA permite eliminar por completo a capacidade de dissimulação de alvos, por exemplo. Um tanque não tem qualquer capacidade de se esconder, porque a IA consegue detetá-lo e destruí-lo em poucos minutos. É neste futuro que estamos a entrar e quem ficar para trás não vai ter qualquer capacidade de resistir. Se acontecer uma guerra em Taiwan, será decidida pela IA entre os EUA e a China. Vencerá quem tiver a IA mais avançada.
Taiwan é foco de discórdia, em boa parte, por causa do domínio na IA, uma vez que é o grande fornecedor de chips aos EUA. Parece-lhe que, neste caso, os EUA deixariam o jogo prosseguir como estão a deixar na Ucrânia?
Claramente, não. Mas quando estive em Taiwan, há um ano, ouvi muita preocupação porque os taiwaneses estão a olhar para a Ucrânia como uma espécie de teste ao comprometimento americano. Só que é diferente. Por um lado, os EUA veem a China como um rival direto e estão muito menos confortáveis em admitir um avanço chinês do que um avanço russo. Por outro, haverá muito mais receio em confrontar a China.
Diz que Donald Trump não concretiza muitas das promessas ou ameaças que faz. Será que a China já tirou as suas conclusões sobre esse padrão de comportamento?
Julgo que sim. Agora, sendo difícil ter a certeza, estou convencido de que, se a China vir pouco comprometimento dos EUA, não vai necessariamente concluir que uma invasão será uma boa solução. Vai preferir usar esse afastamento para pressionar os taiwaneses a aceitar uma aproximação que, a longo prazo, leve à reunificação. Esse é mais o método chinês.
Tem sido bastante chocante ver que os europeus se estão a atrasar, mais uma vez, na corrida pela IA. A parada é agora muito mais alta do que com a internet. Isto é uma internet com esteroides
Que em tempos os americanos também usaram, como diz no livro.
Sim, o método chinês é muito mais o da criação de um sistema que lentamente absorva o resto do mundo. Eles aprenderam com os americanos. Foi isso que os EUA fizeram entre 1890 e 1945. Durante 50 anos, criaram um sistema mundial que, em muitos casos, absorve outros países, quer voluntária quer involuntariamente. Da minha experiência também a viver na China, e a escrever livros sobre a China, diria que é essa a preferência de Pequim. Mas não quero dizer que não nos devamos preparar para uma guerra em Taiwan, sobretudo os EUA. Só que vejo mais a China interessada em usar o seu poder económico e tecnológico, em lentamente construir um sistema tecnológico mundial que outros países usarão e do qual ficarão dependentes.
A criar as regras do jogo.
Exatamente, a criar as regras que outros têm de seguir. Desse ponto de vista, há uma diferença enorme entre China e Rússia.
O próprio Vladimir Putin vem de uma escola diferente.
Claramente. Putin é mais um representante daquilo a que chamo a velha geopolítica. Na cabeça dele, é esse o mundo que faz sentido e tenta lá regressar, com pouco sucesso. O que pode estar a acontecer é que a Rússia acaba por desempenhar um papel na redução do poder do império americano. No início do século XX, a Alemanha queria tornar-se líder mundial. Não conseguiu, mas acabou por ajudar os EUA a atingir esse objetivo, porque teve um impacto grande na diminuição das capacidades do Império Britânico. Por vezes, penso que o mesmo pode acontecer no século XXI, com a Rússia a colocar problemas ao poder americano e a abrir caminho para um novo mundo chinês. É uma possibilidade. Espero que os leitores gostem do meu livro por discutir várias possibilidades.
Em março, a VISÃO publicou um artigo da Time no qual era alvitrada a hipótese de o desenvolvimento da IA chegar a um equilíbrio de forças tal que leve as grandes potências a não a usarem para fins mais devastadores, com receio de contra-ataques de igual proporção, à imagem do que aconteceu com as armas nucleares durante a Guerra Fria. É realista pensar no mesmo tipo de lógica para a IA?
As armas nucleares, nesta nova era, estão a começar a ter um papel ofensivo. No caso da Rússia, é muito claro e julgo que Israel também seria menos aventuroso se não tivesse esse recurso. Em relação à IA, é ainda mais difícil seguir a lógica nuclear da Guerra Fria, porque será tudo muito mais rápido e os dois lados terão pouca capacidade de saber o que existe do outro lado. Haverá um enorme incentivo para ser o primeiro a atacar, mas do livro sai uma mensagem otimista, porque a construção de mundos pode ser uma forma mais eficaz de poder. E quem desejar ter um poder máximo pode obtê-lo através da construção e não da destruição. Foi essa a lição do império americano no último século, que ainda dura e está muito absorvida pela China.
Sendo essa uma visão otimista, chegará o dia em que as superpotências defenderão a não proliferação da IA, como o fizeram em relação ao nuclear?
Julgo que é impossível. Com o DeepSeek já vimos que a China decidiu libertar um modelo de acesso livre, portanto, essas capacidades estão agora no mundo inteiro. Vai ser muito mais difícil de conter. Mas acredito que não devemos estar demasiado pessimistas, porque a promessa da IA também é extraordinária. Pode ser que o resto do mundo encontre finalmente uma receita para o desenvolvimento. Pode ser que tenhamos aqui a solução para muitos dos nossos problemas sociais. Veremos. As consequências para o emprego poderão ser dramáticas, mas também haverá, provavelmente, um grande impacto no crescimento económico. Em 2026, a IA já estará um pouco por todo o lado.
A capacidade de influenciar campanhas eleitorais, e não só, será gigante.
Sem dúvida. A internet já revolucionou a publicidade, mas a IA vai ser capaz de dirigi-la de um modo absolutamente irresistível. Mais perigosa ainda vai ser a possibilidade de manipular os eleitores de um modo que eles nem sequer se apercebem. Também já temos muitas crianças que usam o chatbot como o seu melhor amigo para pedir conselhos e isso é algo para o qual não estamos preparados enquanto sociedade. Quem controlar estes sistemas, terá uma capacidade para influenciar as mentes de um modo absolutamente profundo e invisível que a Humanidade nunca conheceu.
Mais algum alerta?
Um conselho que seria útil para as novas gerações, talvez como forma de tentar resistir um pouco a isto, é adotarem normas mais exigentes de privacidade. Temos de manter um certo secretismo. Se a informação sobre a nossa psicologia estiver disponível online, estamos extremamente vulneráveis a manipulações de vários tipos. Por isso, para quem estiver a começar a criar o seu trilho digital, não seria má ideia criar várias personalidades online para manter uma reserva da personalidade mais profunda e assim ela não ser exposta a todos estes instrumentos. Quem tinha razão era Fernando Pessoa, que quando se referia aos seus heterónimos falava em simulação, ou seja, Pessoa já vivia no metaverso bem antes de nós o termos inventado.
Visao